terça-feira, 28 de agosto de 2007

SITES DE GRUPOS DE TEATRO E COMPANHIAS QUE DISPONIBILIZAM DOCUMENTOS DE PROCESSOS.

Esta categoria é de extrema importância por tratar de processos de criação disponibilizados na internet. Coloco dois exemplos metodológicos deste fazer:
Notas de um diário de bordo, por Alberto Guzik, encontrado no site do grupo Os Sátyros e trechos do artigo Registro Afetividade e Autonomia de Mirtes Calheiros da Cia Artesões do Corpo.

NOTAS DE UM DIÁRIO DE BORDO, por Alberto Guzik[1].

Quando Rodolfo García Vázquez conversou comigo sobre "Kaspar" e disse que ia me mandar o texto, fiquei curioso. Que sentido teria para nós hoje a figura de Kaspar Hauser, o misterioso garoto alemão que viveu no começo do século 19 e foi tema de um filme famoso de Werner Herzog, com o estranho Bruno S. no papel-título? Qual a razão de levar agora a história de Kaspar ao palco? Fiquei à espera do e-mail com a peça anexada. E ele não demorou. Assim que li o texto, ainda na primeira versão (Rodolfo continuou a trabalhar a obra durante os ensaios, e ela cresceu, encorpou, ganhou nitidez e beleza poética), fiquei fascinado. Percebi que o alvo do diretor/produtor/dramaturgo era um questionamento do ser que envolvia, de maneira vigorosa e teatral, problemas filosóficos e morais que estão na raiz de nossa desrazão, da perda dos valores, da hipocrisia campeante e vitoriosa que nos circunda. A peça ousava ao buscar uma metáfora tão distante. E ganhava a parada ao fazer dessa metáfora um ícone com o qual todos temos a ver. O problema central está na visão de sociedade que adotamos, na perspectiva em que aceitamos (ou não) nos encaixar. A educação, a linguagem, os condicionamentos sociais determinam nossa visão de mundo, nossa aceitação (ou não) de pressupostos, tradições, costumes, idéias. Tratar dessas questões hoje significa buscar entender por que a imensa maioria aceita a realidade quase sem discutir, por que nos submetemos a padrões de qualidade de vida mais e mais insatisfatórios. Falar desse Kaspar, que na verdade somos todos nós, é falar de sentimentos cada vez mais inquietantes e perturbadores, que determinam e moldam nosso estar no mundo.Essas coisas todas não percebi na primeira leitura, mas aos poucos. David Ball, em seu maravilhoso livrinho "Para Trás e Para Frente" (Editora Perspectiva, 2002) diz que qualquer peça, para ser entendida, não pode ser lida apenas uma vez. As releituras é que nos levam a entender aonde o autor quis chegar. E para percebermos com exatidão o percurso da peça, temos que remontar o curso da trama, do fim para o início. O processo de estudo do texto ainda não terminou. Não termina nunca. A todo momento vamos descobrindo nele novas camadas de sentido, e isso desafia o ator, exige dele uma adesão inteligente e participativa. Foi assim, durante o trabalho, que percebi que estava atuando em mais uma peça que gira ao redor de preconceitos. (...) Agora Rodolfo coloca em minhas mãos o Narrador, que é complexo por motivos opostos aos do Seu Edson. O Narrador não tem traços psicológicos conflitantes, não é um protagonista de drama. Mas é um personagem, mesmo assim, e tem de ser criando enquanto tal, exigindo que o ator faça o mesmo trabalho de composição que um personagem convencional exige. E no processo de criação do Narrador, dentro deste complexo espetáculo que é "Kaspar", de repente vi-me outra vez às voltas com o preconceito. Agora não mais como agente dele mas como testemunha. O Narrador observa e relata todos os preconceitos -- e todas as violências derivadas deles -- de que Kaspar Hauser é vítima em sua trajetória.
Os preconceitos de cor, de religião, de sexo, de casta, são os maiores problemas que a raça humana enfrenta hoje. E são na verdade os mesmos que vem enfrentando há milênios, sem nunca aprender a lidar com eles. Assim, fico muito feliz por poder participar da discussão desse tema crucial.O clima dos ensaios tem sido extremamente prazeroso. Apesar do tamanho do elenco, não há embates nem conflitos nem tempestades emocionais. Todos sabemos que temos um espetáculo fascinante e difícil para levantar, e muito pouco tempo para isso. A tônica dominante no trabalho é o bom humor com que ele é tecido. Conversa-se muito, discutem-se idéias, mas o ambiente não é sizudo nem pesado. Ao contrário. E, o que é muito bom, percebo que muitas das cenas vão resultar francamente cômicas, apesar da triste história que temos para contar. E para fechar estas notas preciso falar do prazer que é conviver com este elenco gigantesco e talentoso, em que com satisfação enorme reencontro velhos colegas e vejo jovens e hábeis artistas em ação. Além disso tudo, posso realizar cumprir um desejo que tinha há bom tempo: contracenar com Ivam Cabral. Como sempre que um processo vale a pena, "Kaspar" está sendo um grande aprendizado. Que mais se pode querer?

{1] Alberto Guzik é ator e faz o papel do Narrador em "Kaspar ou a Triste História do Pequeno Rei do Infinito Arrancado de sua Casca de Noz".


REGISTRO AFETIVIDADE E AUTONOMIA[2]

Quando me detenho em seus gestos....


Olhar as pessoas movendo-se em diferentes situações na sala de aula ou ensaios e traduzir esse olhar para a linguagem escrita, como cartas informais, levou-me à construção de um relacionamento mais duradouro com os alunos, estreitou laços afetivos (sem que tal resultado fosse premeditado), facilitou o exercício da autonomia entre nós. Algumas normas pedagógicas desaconselham o envolvimento emocional, sugerindo a imparcialidade! Emoção e razão em trincheiras opostas! Todos os conselhos para distanciamento parecem não combinar com minha atuação em classes de expressão corporal e teatro e como diretora da Cia. de teatro dança Artesãos do Corpo.
Ao escrever para essas pessoas (considero a escrita que se detém nos detalhes de uma movimentação, um registro da área do afeto), fui descobrindo que registro, afetividade e autonomia estão intimamente ligados e, quando empregados sinceramente e na medida certa, são poderosos aliados na construção do conhecimento.
Os princípios de Rudolf Laban (o pai da expressão corporal) possuem similaridades com os princípios pedagógicos do sócio construtivismo, na sua maneira de incentivar o aluno a criar, redescobrir e ampliar seu repertório de movimentos, a ignorar conceitos como certo e errado, feio e bonito, a não tomar o professor como exemplo. Adotando R Laban em minhas aulas já vinha exercitando o sócio construtivismo.
Olhar, observar e escrever... cartas! (...) Comecei a utilizar esse recurso acidentalmente, por necessidade, uma urgência em me comunicar com o grupo de teatro - dança Artesãos do Corpo, uma vez que não os encontrava diariamente. Nossos ensaios ocorriam apenas uma vez por semana e eu precisava manter o grupo unido e aquecido, estimulado, abastecido de informações e com o último ensaio realizado vivo em suas mentes durante a semana até o próximo encontro. (...) Anoto o que aconteceu durante os encontros, algo que mereça registro: uma situação, um gesto, um exercício, uma frase, o que funcionou ou não. Essa é a forma que utilizo para manter viva na memória a experiência compartilhada. Estimulo os alunos a criar seu próprio kit de movimentação e importa e muito guardar detalhes: um sorriso do colega, um momento em que o exercício emocionou, pois isso fará a diferença na hora de compor a peça. Estará nas nossas (minha e do grupo) reflexões sobre como continuar, que caminho seguir.
(...) As turmas que recebem essas cartas sentem-se especiais – os atores e alunos se percebem vistos além da sala de aula! O envolvimento cresce e a construção do conhecimento torna-se responsabilidade de todos. Percebi que para ser significativo deve vir ao encontro de momentos especiais e ser verdadeiro nos comentários e na urgência. Não pode ser banalizado e assumem-se alguns riscos, por exemplo, o do registro autoritário, da palavra final, tal como alertava Freire (FREIRE, in Pedagogia da Autonomia 1999:132). Sabemos que todo instrumento deve ser visto com cuidado, pois por si só não se constitui em democrático ou afetivo e pode esconder o autoritarismo.
Poucos se arriscam a responder por escrito, não faz parte da brincadeira (?) Evito vincular as mensagens a um compromisso de resposta por parte deles. Importa o prazer do contato com o registro. Quando o aluno/ator devolve suas impressões por escrito, o faz timidamente e sempre se desculpando pelos erros de português! Por e-mail, eles se arriscam mais - por quê?
Alguns me contam que tiram cópia da mensagem para guardá-la consigo, outros perguntam se vou escrever novamente e outros por que seu nome não está lá. Entendo que, se eles curtem, quem sabe um dia farão disso um instrumento didático, afetivo ou quantas outras possibilidades de tocar o outro esse sistema possibilite. Algumas cartas estão no final do artigo
A construção do conhecimento se dá a partir da experiência, nas relações. Escrever é uma forma de estabelecer relações. Meu discurso tem um componente afetivo, melhor dizendo, um olhar afetivo! Importa-me o pequeno detalhe, um ator preocupado, o exercício realizado, alguém que sugere que eu estou falando demais, etc, Importa saber quem está bem no processo, quem está ali por prazer ou quem está desconfortável.
Meus alunos e principalmente o elenco da Cia. Artesãos do Corpo vivem um processo onde vêem superando dificuldades com muita desenvoltura.Não abdico da crença: em suas potencialidades, em seus esforços e dedicação, sempre respeitando seus momentos de vida. (...) Às vezes me sinto desnecessária, principalmente, quando eles levam isso às últimas conseqüências. Digo: vão andar sozinhos, vocês sempre foram capazes de fazer suas descobertas. Mas eles são carinhosos e permitem que eu fique. E aí só me resta a maternagem: afetização do saber, de Barthes. A metáfora tradicional do mestre como pai – dono do saber e porta-voz da lei é substituído pela metáfora da mãe – aquela que deseja o desejo do filho. O ensino transmite um saber. A aprendizagem transmite uma competência. A maternagem transmite o afeto. (...)
Não é maravilhoso?
(...) Mais uma vez, Barthes: Nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o maior sabor possível.

Mirtes Calheiros.

[1] http://www.satyros.com.br/diariodebordo.asp?id_diario=1

[2] http://www.ciaartesaosdocorpo.com.br/

Um comentário:

Unknown disse...

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