sexta-feira, 17 de agosto de 2007

A Idéia do Teatro segundo Ortega & Gasset

Para escrever sobre o que seja a cena teatral na contemporaneidade, começo trazendo a este texto, a contribuição de José Ortega & Gasset, filósofo espanhol, cuja obra A Idéia do Teatro, trás a resposta do autor a uma questão vital para esta escrita, qual seja: o que é essa coisa chamada teatro?


A coisa chamada teatro, como a coisa chamada homem, são muitas, inumeráveis coisas diferentes entre si que nascem e morrem, que variam, que se transformam a ponto de, à primeira vista, uma forma não parecer-se em nada com a outra. (...) Pelo fato mesmo de que uma coisa é sempre muitas e divergentes coisas, nos interessa averiguar se por entre e em toda essa variedade de formas não subsiste, mais ou menos latente, uma estrutura que nos permita chamar a inumeráveis e diferentes indivíduos de “homem”, a muitas e divergentes manifestações de “teatro”. (Ortega & Gasset; 1991, pg 18).



Para fazer uma idéia do teatro, a idéia do teatro, Ortega & Gasset propõe a “des-ocultação do teatro, isto é, tornar patente o que está latente; revelar essa estrutura que debaixo de suas modificações concretas e visíveis permanece idêntica; o ser da coisa”. Com todas as significações que a palavra teatro pode ter a primeira que Ortega apresenta é: o teatro como um edifício; o edifício teatral. Considerando esta definição, o autor argumenta que o que está fora da arquitetura teatral, são espaços planetários e o que está por dentro desta arquitetura é o que a torna, especificamente, uma arquitetura cênica.


Não há uma só palavra na língua que não tenha várias significações; quase sempre muitas. (...) O teatro é antes de tudo, nem mais nem menos, um edifício – um edifício de estrutura determinada. (...) Um edifício é um espaço demarcado, isto é, separado do resto do espaço que permanece fora. A missão da arquitetura é construir, frente ao “fora”do grande espaço planetário, um “dentro”. (Ortega & Gasset; 1991, pg 28).



Ao considerar essa significação de edifício, o teatro para este filósofo, atinge o que ele denomina de: as dualidades do ser Teatro. Um jogo que está diretamente vinculado ao seu ser arquitetura, edifício. Essas dualidades são: a dualidade física (palco e platéia), a dualidade humana (ator e espectador) e a dualidade funcional (fazer para ser visto e ver). Dentro desse edifício encontramos dois espaços fisicamente distintos, mas totalmente relacionais: o palco e a platéia. Segundo ele, o mais característico de sua forma interior, se apresenta como ele mesmo falou como espaço demarcado. Um “dentro” que se pode chamar de teatro e que está, por sua vez, dividido em dois espaços: a sala e a cena.

A sala está cheia de assentos; as poltronas e os camarotes. Isto indica que o espaço “sala” está disposto para que alguns seres humanos – os que integram o público – estejam sentados e, portanto, sem fazer mais nada senão ver. Em troca, a cena é um espaço vazio, elevado a um nível mais alto que a sala, a fim de que nela se movam outros seres humanos que não permanecem quietos como o público, mas sim ativos, tão ativos que por isso se chamam atores. (Ortega & Gasset; 1991, pg. 29)


O que se pode observar é que, da primeira dualidade, a física, surge uma segunda, a humana: na sala está o público; na cena, os atores. Ao associarmos essas duas dualidades, o teatro ganha em complexidade:


(...) Percebemos que esses homens e mulheres que se movem e falam no palco não são criaturas quaisquer, mas são esses homens e mulheres que chamamos de atores e atrizes, isto é, que se caracterizam por uma atividade especialmente intensa. Ao passo que os homens e mulheres de que o público se compõe, enquanto são público, caracterizam-se por uma especialíssima passividade. Com efeito, em comparação com o que fazemos o resto do dia, quando estamos no teatro e nos convertemos em público não fazemos nada ou pouco mais; deixamos que os atores nos façam – por exemplo, que nos façam chorar, que nos façam rir. Ao que parece, o Teatro consiste numa combinação de hiperativos e hiperpassivos. Somos, como público hiperpassivos porque a única coisa que fazemos é no mínimo fazer que cabe imaginar: ver e, para começar, nada mais. (Ortega & Gasset; 1991, pg 30)


Com esta citação feita acima, quero que as colocações do autor acerca da triangulação entre as dualidades, tragam à tona aquilo, que para ele, parece puramente funcional no Teatro: o ver e o ser visto. As dualidades: espacial de sala e cena, humana de público e atores e funcional de ver e ser visto, fecham à dimensão arquitetônica, da coisa chamada teatro. Algumas considerações acerca da teoria das dualidades do teatro precisam ser feitas, na tentativa de entender sua validade na cena contemporânea. Os palcos no modelo italiano foram preponderantes do séc. XVI até o início do séc. XX. Com o surgimento dos encenadores, no final do séc. XIX, a pesquisa cênica ganha novas induções na questão espacial. Há, claramente, ações de rupturas dessas relações duais do fazer teatral, inclusive influenciando na arquitetura cênica.
Hoje, a arquitetura cênica é múltipla. Há por todos os cantos do mundo, edifícios teatrais nos modelos arena, semi-arena, italiano, elisabetano e principalmente, os teatros de caráter experimental, aonde a arquitetura não fixa a cena, em apenas um desses modelos. Muito pelo contrário, sua filosofia é a da multifuncionalidade.
Esta arquitetura de caráter experimental nasce em função da necessidade eterna de reinventarmos o fazer teatral. Os artistas da cena, durante todo o séc. XX e ainda agora, no nascimento do séc. XXI, buscam quebrar as divisas entre o palco e a platéia, criando uma zona única que pretende misturar atores e espectadores, inclusive subvertendo suas funções, não mais, dividindo-os em hiperpassivos e hiperativos. Um bom exemplo desse radicalismo experimental são os espetáculos construídos em espaços não convencionais, isto é, espaços arquitetônicos que não teriam a função de abrigar a cena artística; não seriam espaços demarcados em sua natureza. Um outro formato que nasceu da necessidade de ruptura desses possíveis elementos essenciais é o happening e mais adiante, também explodiria uma nova linguagem: a performance art. Mas esta, fica para depois. Voltemos ao filósofo. Ortega & Gasset, nos pergunta se o Teatro não é também, um gênero literário? Sim, ele é um gênero literário, mais precisamente o dramático, gênero que acompanha, outros dois, o épico e o lírico. Mas Ortega faz várias restrições a este respeito. Primeiro ele diz, que é preciso se libertar por um instante do hábito mental que essa formula tão repetida produz em nós; da noção de Teatro como gênero literário.


Porque o literário se compõe só de palavras – é prosa ou verso e nada mais. Mas o Teatro não é apenas prosa ou verso. Prosa e verso há fora do Teatro – no livro, no discurso, na conversação, no recital de poesia – e nada disso é Teatro. (...) A palavra tem no teatro uma função constituinte, mas muito determinada; quero dizer que secundária à “representação” ou ao espetáculo. Teatro é por essência presença e potência de visão – espetáculo – e enquanto público, somos antes de tudo espectadores, e a palavra teatro, não significa senão isso: miradouro, mirador (Ortega & Gasset; 1991, pg 32)


O que é que vemos no palco? Esta pergunta apropriada a essa tese, é respondida, pelo próprio filósofo espanhol com uma dissertação poética que desenvolve a questão:


Mas o que vemos no palco? Por exemplo, vemos a sala de um castelo – palácio medieval no norte da Europa, que se abre largamente sobre um parque, precisamente o parque de Elsionor; vemos a margem de um rio que desliza em fluxo lento e triste, árvores que sobre suas águas se inclinam com vago pesar -, bétulas, álamos e um salgueiro chorão que deixa cair seus ramos. Não é certo, senhores, que o salgueiro é uma árvore que parece estar cansada de ser árvore? Vemos uma moça trêmula que traz flores e ervas nos cabelos, no traje, nas mãos e avança vacilante, pálida, o olhar fixo em um ponto da grande distância, como que olhando sobre o horizonte, onde não há nenhuma estrela, a estrela nenhuma. É Ofélia demente, coitada!, que vai baixar o rio. “Baixar o rio”é um eufemismo com que na língua chinesa se diz que alguém morre. Isto é, senhores, o que vemos. Mas não, não vemos isso! Será que por um instante padecemos de uma ilusão de ótica? Porque o que de fato vemos são somente telas ou cartões pintados; o rio não é rio, é pintura; as árvores não são árvores, são manchas de cor. Ofélia não é Ofélia; é.Marianinha Rey Colaço.[1] (Ortega & Gasset; 1991, pg 34)



Com estas palavras, o autor nos aproxima da transfiguração mais importante e prodigiosa do Teatro: a metamorfose. No palco, não achamos que estamos vendo duas mulheres, mas sim uma só. Apresenta-se Marianinha que re-presenta Ofélia. Tanto coisas quanto pessoas, no palco, são apresentadas, representando outras que não são elas. E isto é formidável e fica claro em seu texto, no seguinte trecho:


A realidade de uma atriz, enquanto atriz consiste em negar a sua própria realidade e substituí-la pela personagem que representa. Isto é re-presentar: que a presença do ator sirva não para ele presentar-se[2] a si mesmo, mas para presentar outro ser distinto dele. (Ortega & Gasset; 1991 pg. 35).




O palco possui planos; camadas sobre camadas. Onde, em primeiro plano, vejo Ofélia e um parque ou o lago onde ela, em breve, se afogará. Vejo também, em segundo plano - como se fosse um avesso - Marianinha e tecidos pintados. No palco - os atores em seus cenários, com seus objetos e palavras - são a metáfora visível. Não são seres ou coisas no sentido real, mas no sentido irreal; revelam o como se. Gostaria de concluir o diálogo com este autor, usando as suas palavras, sobre, o que é que sucede quando sucede uma metáfora. Ele parte daquele simples exemplo de metáfora – a moça comparada a uma flor - aonde a face da amada é como a flor; a pele do rosto amado é como as pétalas de uma rosa:


Ao metaforizar ou metamorfosear ou transformar a face em rosa é preciso que a face deixe de ser realmente face e que a rosa deixe de ser realmente rosa. As duas realidades, ao serem identificadas na metáfora, chocam-se uma com a outra, se anulam reciprocamente, se neutralizam, se desmaterializam. (...) O mesmo acontece no teatro, que é o “como se” é a metáfora corporificada – portanto, uma realidade ambivalente que consiste em duas realidades – a do ator e a da personagem do drama que mutuamente se negam. É preciso que o ator deixe durante um momento de ser o homem real que conhecemos e é preciso também que Hamlet não seja efetivamente o homem real que foi. É mister que nem um nem outro sejam reais e que incessantemente se estejam desrealizando, neutralizando para que só fique o irreal como tal, o imaginário, a pura fantasmagoria. (Ortega & Gasset; 1991, pg 38/39).

Na conferência a pouco destrinchada, Ortega expôs o Teatro como algo que possui uma essência, não importando a forma com a qual se apresente. Muito pelo contrário, reconhecendo sua diversidade formal e reafirmando a existência de elementos constitutivos essenciais. Ao des-ocultar o teatro, revela o que está na essência dessa arte. Em primeiro lugar, as dualidades: a física (palco e platéia), a humana (o ator e o público) e a funcional (ver e fazer para ser visto). Seguidas pela Metamorfose e pela Metáfora. Estas, concebidas por ele, como responsáveis pelo desaparecimento do real e a instauração da irrealidade[3].

[1] Ortega, na conferência que proferiu e deu origem a esta obra, faz esta citação referindo-se a uma atriz, filha da ilustre primeira atriz do Teatro de Dona Maria, local que abrigou a conferência e espaço cênico sempre usado como exemplar, por ser la italiana,, em suas considerações. (Ortega & Gasset; 1991, pg 34)
[2] O tradutor, para dar o sentido pleno de ação do ator, nos termos do original, recorreu a esta palavra pouco usada, mas existente em português, em lugar da palavra “apresentar”.
[3] Segundo este autor, a expressão mais usada na metáfora emprega o como e diz: a face é como uma rosa. O ser como não é o ser real, senão um como ser, um quase-ser: é a irrealidade como tal. (1991, pg 38)..

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